Ganbei, China!

Tanira Lebedeff
5 min readJul 18, 2018

Já se passaram algumas horas do meio-dia, mas o Sol, tenho certeza, bate a pino na minha cabeça. Olho para o caminho à minha frente e penso em desistir. É íngreme, é longo, feito de pedras irregulares, e infestado de turistas. Tenho a impressão de que começa a me faltar ar… Me obrigo a continuar, certa de que se não o fizer jamais, nunca vou me perdoar! Quem mandou tomar tanta cachaça em pleno almoço? Dane-se a dor de cabeça, a sede — vamos logo caminhar pela Muralha da China.

O ano era 2000. Fui a Beijing gravar uma série sobre o treinamento de atletas olímpicos. Na época a China era candidata a sede dos jogos de 2008, por isso o governo investia alto numa campanha de relações públicas e equipes de reportagem de todo o mundo eram recebidas com toda a pompa e circunstância.

Primeira impressão: as ruas de Beijing merecem todas as metáforas que lhe atribuem. Parece uma eterna saída de estádio, como se todos estivessem sempre atrás de um trio elétrico no Carnaval, lá todo dia é dia de feira, um (clichê dos clichês) “formigueiro humano”. As ruas da cidade estão constantemente lotadas de gente, pedestres, ciclistas, rickshaws, carros!

Sempre comento que em alguns aspectos a ordem em Los Angeles, onde eu morava nessa época, chegava a entediar — como no trânsito constante nas exorbitantes freeways e a ausência de pedestres pelos bairros. Pois na China entrei em êxtase vendo a vida congestionando ruas e calçadas.

Também encanta o contraste entre épocas na arquitetura da cidade. Prédios contemporâneos dividem o cenário com pagodas e obras da época imperial. O exemplar mais majestoso é a Cidade Proibida. Morada de dezenas de imperadores chineses, era uma cidade dentro da cidade bem no centro de Beijing, hoje parte do patrimônio histórico da UNESCO (é possível visitá-la pelo cinema, assistindo a “O Último Imperador”). Extremamente bem conservada, a Cidade Proibida é considerada o maior palácio do mundo.

Aliás, a China é um país de superlativos, tem vários “maiores”. Uma das maiores populações do planeta. Junto à Cidade Proibida fica a maior praça pública do mundo, a Praça da Paz Celestial ou Tiananmen Square. É a praça que virou notícia em 1989, com a imagem de um jovem desarmado tentando parar uma fileira de canhões — era uma ação enérgica do governo chinês para acabar com protestos que já duravam quase dois meses.

No dia-a-dia a Tiananmen tem um significado bem mais singelo para os chineses. É lá que as famílias se encontram para jogar cartas, soltar pandorga, tomar chá.

(Parêntese: apesar de ser um local de vai-e-vem o dia inteiro, é extremamente limpo! A limpeza parece ser uma paixão ou uma obsessão nacional chinesa. A Praça da Paz Celestial é constantemente varrida e polida.)

Beijing é viva! De manhã cedo as praças e parques da cidade são tomados por idosos praticando o Tai Chi Chuan. E soltando pipas. E tomando chá.

Nessa visita à China a barreira do idioma doeu. Muito chato não poder me comunicar além do vocabulário básico de sobrevivência como ni hao (“olá”), xie xie (“obrigada”) e um parco io xi baishi tienchitáu (algo como “sou da tv brasileira”). E daí seu interlocutor acha que você sabe falar o idioma e tenta engrenar uma conversa. O que fazer?

Outro superlativo chinês é a quantidade de medalhas conquistadas em Olimpíadas. Resultado do alto investimento em esporte — lá o treinamento dos atletas começa muito cedo.

Conhecemos os emblemáticos atletas da ginástica olímpica. Pequeninos, eles são trazidos de cidades do interior para viver na capital e entrar na peneira sonho olímpico. E, olha, isso é motivo de orgulho para as famílias.

Conhecemos judocas, halterofilistas, nadadores, astros do ping pong… Em todos centros de treinamento, havia alguns aspectos em comum. Nos bebedores tem água fria, e água quente para o chá. Todos os atletas são tratados com acupuntura e ervas medicinais.

O ponto alto, memorável da viagem foi a visita ao centro de treinamento dos atletas da luta livre olímpica.

Viajamos uma boa hora desde Beijing para chegar lá. Dezenas de jovens grandalhões se degladiam durante horas, tentando empurrar o adversário para fora do círculo pintado no chão.

Fomos convidados a almoçar com os treinadores e tive algumas belas surpresas ao chegar no refeitório.

Número um: depois de comer cada atleta lava seu prato.

Surpresa número dois: os atletas bebiam cerveja nas refeições. Pergunto “como pode”? A resposta: “por que não”?

Terceira supresa: todo o resto do almoço.

O cardápio do dia era shabu shabu. É um prato comunal: na mesa há vários cortes de peixe e carne e legumes crus que você escolhe e mergulha para cozinhar numa panela com um caldo quente — como se fosse um fondue. E se na mesa dos atletas tinha cerveja, na nossa havia uma garrafa do mais fino baijiu.

Quem me conhece sabe que adoro uma mesa animada, e ainda mais um “brinde”. Pois naquele almoço tive uma overdose de ganbei.

Ganbei é o “saúde” dos chineses. Nos encontros profissionais ou celebrações em família a tradição é brindar com o baijiu, uma aguardente feita à base de grãos como arroz ou milho. O baijiu é servido em copos tipo martelinho, como a gente toma a cachaça aqui. Mas não é um brinde simples não. Tem que encostar o copo abaixo do copo do proponente do brinde. Brindar olhando nos olhos das pessoas da mesa. Tomar todo o baijiu — fundo branco! E nunca, nunca recusar o brinde. É aí que mora o problema…

O baijiu tem um teor alcoólico que pode chegar a 60%!

E naquele almoço foram feitos não sei quantos brindes em homenagem aos visitantes, aos atletas, à China, ao Brasil, aos Jogos Olímpicos, ao simples fato de que era uma sexta-feira.

Terminado o almoço, fomos direto para a próxima pauta: filmar o grande cartão postal do país. Quanto tempo de viagem? Uma hora, mais ou menos. Eba! dá tempo de me recuperar do baijiu! Que nada.

Chegamos a Badaling e os gritos de ganbei ainda ecoavam na minha cabeça.

Badaling é onde fica um dos pontos de entrada para a Muralha da China.

A Grande Muralha da China é um conjunto de fortificações construídas por várias dinastias ao longo de dois milênios para vigiar as fronteiras do império chinês. Alguns trechos são abertos para visitação, e o de Badaling é um dos mais populares por ser melhor conservado. Ela foi erguida durante a Dinastia Ming para proteger Beijing, e é considerada a porção mais segura da muralha pois é formada por um labirinto de caminhos e torres. O caminho sobre a muralha é largo — o suficiente para várias pessoas caminharem lado a lado, ou como seria na época, para que vários cavalos galopassem lado a lado.

Eu e o cinegrafista nos juntamos à multidão de turistas. Difícil conciliar a tarefa de gravar com a vontade de só ficar admirando aquela maravilha. Me senti como uma formiguinha, passeando pela História. Parecia delírio — estava ainda um pouco embriagada, lembra?

Ser jornalista é uma aventura. Nunca um dia é igual ao outro.

Agora ganbei p’oceis.

(Tem mais relatos de viagens e bastidores de reportagens em “A Velhinha que Entrevistou George Clooney” — Catarse, 2016.)

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